sexta-feira, 22 de junho de 2007

Os reis da estrada

Por muito que os automobilistas se queixem dos sucessivos aumentos, os preços dos combustíveis não são ainda suficientemente elevados para constituir um factor dissuasor. Mesmo uma subida repentina pode trazer uma pequena retracção nos consumos, mas que se esvanece passado o primeiro impacte psicológico. Os motivos para a contínua aposta no transporte individual parecem residir sobretudo na sensação de independência, nos menores tempos de percurso, no conforto e na fiabilidade que consegue em relação ao transporte público, apesar dos engarrafamentos constantes. E em algumas situações, face às fracas penalizações no uso do automóvel privado, este chega até a ser mais económico, numa perspectiva caseira. Se, por exemplo, um casal em Sintra que tenha um veículo de dois lugares a diesel rumar para Lisboa todos os dias paga menos do que se tivesse dois passes sociais. Ou se uma pessoa for um viajante fortuito a Lisboa, necessitando de ir a vários locais, consegue poupar tempo e dinheiro utilizando o seu automóvel privado, evitando assim a complexa, descoordenada e cara teia de transportes intermodais.

O crescimento do tráfego nos grandes centros urbanos tem sido proporcional à venda de combustíveis, que disparou nos anos 90. Actualmente, os distritos de Lisboa, Porto e Setúbal representam cerca de metade das vendas de combustíveis do país, o que aliás explica as razões do significativo agravamento da poluição urbana. De qualquer modo, o crescimento foi generalizado, sobretudo ao nível do gasóleo, colocando outros problemas, quer ambientais quer na refinação nas petrolíferas. O consumo de gasolina a nível nacional registou um crescimento de 82 por cento na década de 80 e de 38 por cento na primeira metade dos anos 90. A partir daí verificou-se um aumento da ordem dos três por cento ao ano. O gasóleo, por sua vez, teve um incremento de 70 por cento na última década. Sobretudo devido ao incremento do transporte de mercadorias, mas também aos benefícios fiscais dos veículos ditos comerciais ligeiros a diesel, os consumos de gasóleo já são superiores aos da gasolina. Em 1973, o gasóleo vendido não chegava a metade da gasolina comercializada.

Esta alteração do perfil de consumos teve fortes impactes ambientais. A queima de gasóleo resulta num dos principais problemas ambientais e de saúde pública nos centros urbanos, devido à elevada emissão de partículas, que provoca uma agravamento de problemas respiratórios e cardíacos. À conta deste poluente, Lisboa transformou-se numa das cidades mais poluídas da Europa. Só no ano passado, em cerca de 240 dias ultrapassou-se o limite máximo admissível para as partículas.

Por outro lado, o desequilíbrio nos consumos de combustíveis em Portugal – e tendo em consideração o padrão usual dos processos de refinação – faz com que as petrolíferas nacionais tenham necessidade de importar parte do gasóleo consumido no país a preço elevado e exportar a baixo valor a gasolina excedentária que acaba por ter que se produzir. Nos últimos tempos tem-se tentado, de forma ténue, desincentivar o uso de gasóleo, com o fim dos benefícios no imposto automóvel e com os maiores agravamentos do seu preço. Mas ainda se está longe do exemplo do Reino Unido, onde o gasóleo já tem um custo superior ao da gasolina. Contudo, num país em que um antigo primeiro-ministro preferiu que os contribuintes pagassem mais impostos para evitar que os condutores vissem os combustíveis mais caros, essa não será uma medida para políticos pouco corajosos. Até porque muito consumo de combustíveis, por via do imposto sobre os produtos petrolíferos, é sempre um negócio rentável a curto prazo para um governo.

Perante este quadro, não surpreende que o tráfego rodoviário, sobretudo das maiores cidades, esteja cada vez mais caótico e sem soluções à vista por mais apelos – inconsequentes, diga-se – à utilização dos transportes públicos. Até porque a oferta de condições para o usufruto do carro não param. Veja-se o caso paradigmático da Ponte 25 de Abril. A construção da segunda travessia sobre o Tejo foi justificada pela necessidade de descongestionamento daquela ponte. Além disso, previa-se que a instalação do comboio para a margem sul diminuísse o fluxo rodoviário. O próprio alargamento do tabuleiro para cinco faixas – introduzindo uma faixa “bus” – também era uma das formas para captar clientes para os transportes públicos.

Pois, mas apesar das boas intenções, a evolução tem sido tristemente contrária. E muito à custa da cobardia governamental em aumentar fortemente as portagens na ponte 25 de Abril e nas fracas penalizações para o estacionamento de veículos no interior de Lisboa. Se em 1997 – portanto, ainda antes da inauguração da ponte Vasco da Gama, feita em Abril de 1998 –, a ponte 25 de Abril era percorrida diariamente, nos dois sentidos, por cerca de 139 mil veículos – o que já era quase o dobro do que se registava em 1986 –, actualmente já ultrapassou os 155 mil. Em 15 anos, o tráfego desta travessia aumentou cerca de 120 por cento! Por outro lado, a utilização da ponte Vasco da Gama tem superado todas as previsões. Em apenas quatro anos de funcionamento, esta travessia passou de uma média diária de 37 mil veículos em 1998 para mais de 55 mil no ano passado. Uma subida superior a 40 por cento.

No Porto verificou-se uma situação relativamente idêntica a Lisboa em relação às travessias fluviais. A ponte do Freixo, inaugurada em meados dos anos 90, teve no seu primeiro ano de funcionamento uma média diária de cerca de 20 mil veículos. No ano 2000 atingiu os 60 mil – ou seja, três vezes mais – e, de acordo com dados do Instituto de Estradas de Portugal, no primeiro semestre de 2001 a média diária já foi de quase 65 mil. Isto quando a outra ponte, a da Arrábida, continuou com um acréscimo do fluxo de quase 10 por cento nos últimos cinco anos. Também aqui uma nova ponte não serviu para desanuviar tráfego, mas sim apenas para atrair mais. À conta das duas pontes, entram no Porto, vindo do sul, mais cerca de 35 mil veículos por dia do que antes da inauguração da ponte do Freixo. Também aqui se vai construir mais uma ponte (a do Infante) e logo pela empresa promotora do metro do Porto. Até seria irónico, caso não fosse grave...

Os casos de uso desregrado do automóvel em Portugal não são exclusivos das grandes cidades. De acordo com as medições em contínuo do tráfego nas estradas nacionais sob jurisdição do Instituto de Estradas de Portugal, no ano 2000 existiam 25 troços rodoviários com um fluxo diário superior a 20 mil veículos. No caso das auto-estradas, apesar dos últimos dados do tráfego entre portagens remontarem a 1995, o tráfego médio diário ultrapassava os 20 mil em 23 dos 55 troços então existentes. Uma situação que terá aumentado muito significativamente a partir desse ano.

De qualquer modo, estes são os valores médios, uma vez que, por exemplo, as estradas algarvias – como a Via do Infante e a EN125 – apesar de registarem um volume de tráfego médio diário inferior aquele valor, ultrapassam os 30 mil veículos no pico do Verão. E no caso das áreas metropolitanas, o tráfego no mês de maiores congestionamentos – que, regra geral, ocorre em Setembro – pode ser mais de 10 por cento superior à média. E depois há aqueles dias infernais de filas caóticas que na ponte 25 de Abril já fez com que se tivesse suplantado os 180 mil veículos – isto é, 20 por cento acima da média ao longo do ano. Curiosamente, os volumes de tráfego nesta ponte mostram que as borlas de Agosto não fazem nenhum sentido – que acabam por ser pagas à Lusoponte com o dinheiro dos contribuintes –, uma vez que o volume de tráfego neste mês chega a ser inferior ao de Julho e quase idêntico ao de Junho.

Os congestionamentos do tráfego são, conforme se verifica numa análise dos dados do Instituto de Estradas de Portugal, um fenómeno impressionantemente recente. De entre os troços que possuem dados desde 1995, constatam-se aumentos do volume de tráfego quase inacreditáveis, em muitos casos superiores a 30 por cento.

Se parecem existir limites, agora até orçamentais, para a construção de novas pontes, nas rodovias tradicionais das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, a estratégia parece ser de quantos mais carros melhor. Logo se reivindica mais estradas. Em 1990, o IC19 estava entupido e fez-se o alargamento para duas faixas em cada sentido. E depois disso? Parou-se a construção de fogos nos arredores de Lisboa? Tentaram-se implantar políticas de fixação de pessoas na capital? Descentralizou-se o emprego para os subúrbios? Não, nada disso. Deixou-se que um concelho como Sintra captasse cerca de 80 mil pessoas em apenas 10 anos, permitindo a construção de mais de meia centena de milhar de novas habitações, que engrossam o calvário do vai-e-volta dos subúrbios para a capital que já não tem população para o emprego que oferece.

A evolução do tráfego no IC19 (Queluz), IC16 (Lourel) e IC17 (Miraflores) mostra bem a irresponsabilidade do poder político autárquico e central em matéria de transportes. Nestes três troços, os crescimentos do volume de tráfego entre 1995 e 2000 foi de, respectivamente, 86, 37 e 52 por cento. Agora, vamos ter mais um alargamento, mais uns largos milhões de euros gastos... até ao próximo novo alargamento com mais uns milhões que se gastarão. A produtividade de um país reflecte-se nestes exemplos.

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